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UMA OUTRA FORMA DE VIVER

As dores que assolam o mundo, a injustiça em suas mais diferentes manifestações, como a fome, a violência, marcam com brasa um número imensamente grande de pessoas pelo planeta. Alguns marcados pela tragédia que lhes roubou algo de si ou algo em si seguem seu curso infligindo o mal a outros tantos também. O que faz romper um ciclo de infortúnios, de guerras, de flagelos? Como reintegrar ao humano a humanidade que lhe constitui? Para muitos, tal humanidade se tornou estranha, e talvez nem haja recordação de algum dia tê-la tido como parte de si.

A situação atual da Pandemia, com todas as suas adversidades intensificou ainda mais a agonia de tantas pessoas. O humano dividido enquanto espécie humana por abismos de desigualdades, parece ter perdido o rosto, o comum que torna a todos iguais enquanto humanos que somos, independente de cultura, etnia, país, religião, situação econômica. As lutas, opressões, violências incontáveis que fragilizam nossos vínculos mais fraternos, e até fazem duvidar que eles existam, no final de tudo não terão nenhum sentido. Eles são a própria falta de sentido. A violência de uns contra outros, movida pela vontade de dominação, pelo desejo de poder, não é garantia de vida, de vida plena enquanto garantia de respeito ao ser humano, seja quem for, seja da forma que for.

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A realidade da Pandemia tem sido uma vitrine por meio da qual o ser humano faz-se conhecer. É possível perceber uma parcela da população que ainda dorme um sono profundo. Acordar se faz urgente. Despertar para a responsabilidade que se tem para com o outro por meio do respeito, da responsabilidade, é o que nos convoca a crise mundial pela qual estamos passando. Ao mesmo tempo, atitudes contrárias também são realizadas. Gestos fraternos, de comprometimento para com o próximo são luzes que nos apontam caminhos possíveis, em meio ao caos no qual nos encontramos.     

A responsabilidade conduz o ser humano para uma forma de vida ética que tem por característica e consequência a conexão entre todos. Como uma grande teia, tudo e todos estão interligados, mas é necessário que haja consciência desta realidade. A consciência da inter-relação move o ser humano no sentido de responsabilizar-se pelo outro. No momento em que desperta a consciência das necessidades alheias e da responsabilidade que temos para com elas, a obrigação ganha forma e se incorpora de um modo transformador na vida como um todo.   

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Simone Weil, filósofa francesa que viveu entre 1909 e 1943, testemunha das duas Grandes Guerras que assolaram a humanidade, falava sobre a importância de orientarmos nossas relações por meio da noção de obrigação. A obrigação não como algo negativo, que se faz forçado por algo ou alguém, mas obrigação enquanto atitude natural que se tem para com o próximo, ao reconhecê-lo como outro que é, como humanidade que nos iguala, que nos irmana, que nos constitui desde sempre e para sempre. Fazer o bem é uma obrigação. Não se trata de favor, nem de solidariedade; mas sim de responsabilidade. Cada ser humano é responsável pelo outro enquanto próximo que se encontra pelo caminho, como nos deixou o exemplo, o Bom Samaritano.  Assim, a obrigação é um conceito importante nestes tempos atuais, pois conforme Simone Weil,

 

O objeto da obrigação, na área das coisas humanas, é sempre o ser humano como tal. Há obrigação para com todo ser humano, pelo simples fato de ele ser um ser humano, sem que nenhuma outra condição precise intervir, mesmo que ele não reconhecesse nenhuma. (WEIL, 2001, p. 9).

 

A noção de obrigação está atrelada ao respeito. A obrigação é cumprida quando o respeito é expresso. Agimos orientados pela obrigação quando reconhecemos o ser humano como humano que é, um ser sagrado, a quem se deve respeito. A obrigação é relativa a cada pessoa em particular, e também aos governantes. É obrigação do poder público agir de forma responsável para com as necessidades de cada ser humano, seja ele quem for, e quando tal obrigação não é cumprida por parte dos governantes, segundo a filósofa, isto constitui um crime. (WEIL, 1957, p. 70-71)

Inúmeras são as necessidades que o ser humano possui. Algumas são físicas, como a fome, a moradia, a vestimenta, outras são morais, como a liberdade, a honra, a segurança, entre outras. Simone Weil afirma que a obrigação principal para com os seres humanos (necessidade física) é não deixá-los passar fome.

 

Todo o mundo imagina o progresso como sendo inicialmente a passagem a um estado da sociedade humana em que as pessoas não passarão fome. Se se fizer a pergunta em termos gerais a qualquer pessoa, ninguém pensa que um homem seja inocente se, tendo comida em abundância e encontrando à sua porta alguém quase morto de fome, ele passar sem lhe dar nada.

É, portanto, uma obrigação eterna para com o ser humano não o deixar passar fome, quando se tem ocasião de socorrê-lo. (WEIL, 2001, p. 10)

 

O Centro Infanto Juvenil Monteiro Lobato se depara diariamente com esta necessidade humana, dentre tantas outras. A fome é uma ferida aberta que continua sangrando vergonhosamente em nosso país e no planeta em geral. Desta forma, por meio da atitude responsável de quem compreende o ser humano como sagrado que é, e para com ele age com respeito, o CIJ Monteiro Lobato tem sido, a cada dia, Luz, resistência e verdadeira responsabilidade para com o ser humano, principalmente para com aqueles mais sofridos e atingidos pelos infortúnios da vida. E tem conseguido ser este foco de Luz, por que conta com parcerias e benfeitores que de forma lúcida, sabem que a obrigação para com o outro é a chave para uma nova sociedade.

 

Neste tempo de transição, em que a injustiça, o descaso e a ausência de compaixão reinam a passos largos, tecer uma nova forma de vida, pautada no reconhecimento e responsabilidade para com o próximo não é apenas tarefa urgente, mas é inclusive, necessária. Agir de forma ética para com o outro é o modo pelo qual pode ser possível fazer-se romper o ciclo de negligências trágicas que assolam a humanidade. Utopia ou não, é preciso caminhar nesta direção. Já se vê pequenas faíscas desta nova realidade pelo caminho. Faíscas pequenas, mas ainda assim reais. Percebê-las é conseguir ver para além do que está posto. É conseguir ver o que não está dado, mas que já desponta, na esquina de um futuro não tão distante. 

 

Referências:

 

WEIL, Simone. (1957) Écrits de Londres. Paris: Gallimard, 1957.

 

__________. (2001) O Enraizamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

Texto: Ana Lúcia Guterres Dias

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